11.10.04

Episódio 2- A Família: flutes, cartas e òpio

O Sol escorregava pela abóbada celeste, vermelho de cansaço.
Pouco depois desaparecia na linha do horizonte. Consigo arrastava o manto anil da noite, roído pelas traças e ao qual os poetas chamavam céu estrelado. Até lhes faziam poemas......

A minha disposição, naquele entardecer não era das melhores.

Na Ponte sobre a Estrela, observava o que outrora fora o reino de Lapadócia. Hoje em dia estava confinado a uns meros metros quadrados nas traseiras de um prédio barato, algures na Rua de São Ciro.
Onde raio, estaria o Toino???
Não conseguia deixar de pensar nele. Há anos que nada se sabia do animal. Apenas sabia que corria mundo.
Na minha cabacinha, as imagens do passado, voavam num turbilhão, como sacos de supermercado barato, atirados do alto Cristo Rei em dia de temporal.
Tinha de haver uma explicação. Mas já tinha "despachado" o meu explicador.
Agora tinha de descobrir por mim.
Sem saber do Toino, eu nunca seria herdeiro Universal de Lapadócia.
Acendi o cachimbo. Puxei uma fumaça de ópio, e deixei-me flutuar no mar das minhas memórias……..



A nossa família, a propriedade, a casa, tudo se tornava presente e tomava forma…..
Ouvia a música da minha infância....
A nossa família, era sem dúvida uma das mais poderosas, senão a mais poderosa do mundo.
Herdeiros de Lapadócia.
Éramos detentores de uma riqueza imensa. Pornográficamente ricos.

Para evitar preferências, todos eram tratados por Tios e Tias. Apenas se falava nas Mães para qualquer insulto menor. Esse conceito perdurou.
Transformando a ex-Lapadócia, na zona do mundo com maior nível de consanguinidade. Todos, Tias e Tios.

Fazia-se o mínimo, na família.
Pela manhã, todos se vestiam a rigor, pegavam num copo e iam bebendo espumante ou vinhos caros até ao almoço. À tarde, jogava-se às cartas, dizia-se mal das pessoas e continuava-se a beber. À noite fumava-se Ópio.
Como eu era criança, não podia jogar cartas. Diziam que me podia viciar.
Era um stress.

A casa, era monumental. Foi construída ao longo de séculos.
Era tão grande, que havia charrettes a percorrer os corredores.
Tinha duas estalagens, entre os salões e os quartos. Davam guarida a Tios que não conseguiam chegar aos aposentos a tempo. Era chato ter de dormir nos corredores..

Nos diversos salões, várias orquestas sinfónicas tocavam 24 horas por dia.
Existiam vários jardins. De inverno, Verão, Outono-Inverno e alguns de Meia Estação.

Num dos salões de jogos um dos Tios enganou-se e em vez de uma mesa de bilhar, comprou um campo de futebol.
"Ambos têm o tampo verde", desculpou-se.
Compraram-se 2 equipas de futebol com àrbitos, juízes de linha e claques.
Mas como os resultados eram sempre os mesmos e tudo aquilo era um desassossego, decidiu-se acabar com o estádio. O cheiro a suor era insuportável.
O relvado passou a ter aves, e foi gerido pelo Sr. Nuno. O dos Pintos às Costas.

Nos jardins, o Tio, mandou construir uns banhos cobertos. Ao estilo renascentista, como tinha visto no Baidecano, numa das suas viagens pelo exterior.

Mas, como uma das Tias, teve uma visão divina. Viu S. José a aplainar tábuas nas oficinas da Ikea.…..
Os banhos passaram a Basílica.
A Família pouco lá ia.
O único Tio que lá foi, esteve 3 dias no confessionário. Foram precisos 3 padres, massagens cardíacas e ainda hoje o Tio reza penitências.
A basílica ainda se avista nos dias de sol.

A propriedade estendia-se em todas as direccões até se perder de vista.
Dizia-se que por ser tão grande, a linha do horizonte passava no meio.
O Tio Jolo, assim chamado, pelo elevado índice de burrice por neurónio quadrado, acreditava que era verdade.
Um dia encontrou um arame no chão e teimou que era um pedaço da linha do horizonte. Perante as gargalhadas de todos, fechou-se no quarto e saiu muitos anos depois com a teoria, que o arame era um meridiano fossilizado.
Ainda hoje se o pode ver no Museu Nacional de Lapadócia. Encerra às 17 horas.

Os jantares na nossa casa eram famosos. Individualidades mundiais percorreram os salões. Artistas, empresários, estrelas de cinema, de novelas fatelas, políticos, àrbitos, fiscais das Finanças e até Chefes de Estado, que saíam em muito mau estado.
Eram jantares de centenas de pessoas. A mesa era tão grande que em cada 250 lugares, havia uma cozinha. O Sr. Lopes, era o chefe de cerimónias. De cabelo oleoso, era bom a entreter os convidados e a fazer sumos de laranja. Expremia como ninguém. Mas por graça todos diziam "Estou Semtinto, Lopes". Partiu para fazer carreira a solo.

Houve outro personagem.
Era um míudo Catalão que a Família acolheu, o Picancho,
O nosso pintor de paredes. Um dia pintou o retrato da Tia, e mostrou ao Sr.Zé, um dos caseiros.
"Tã bunito. Ondé cubiste?" Passou a ter a alcunha do “O Pintor Cubista Pá Arte”.
Foi a fase negra. Um dia, foi-se embora.
Espero que se tenha safado.

Também, o saudoso Pastor, um emigrante francês, da Croissantécia, foi acolhido pelos Tios. Um mestre nos adubos químicos e seus derivados.
Há uma historia curiosa sobre ele. Uma das Tias, quiz envenenar o Tio e pediu-lhe que fizesse um “Anti-bio-Tio”. O rapaz enganou-se na composição e o Tio em vez de bater a bota, nunca mais teve infecções e gozou de uma saúde invejável até uma idade avançada.
A Tia, mandou o míudo embora.
O jovem mudou o nome para Pasteur e estabeleceu-se por conta própria. Ainda foi a vários jantares com as afilhadas, a Penny e a Celina.

Muitos dos que fizeram história, eram ou passaram por Lapadócia. Ao longo de séculos frequentaram a nossa casa. Gente como, Maria et Toina,neta. Ranhoire, Joana D'arcos (que não era nada ao Passo D'Orcas), Rave hell, Nope Leão, Clark Gaba-se, Marilna Mona Roy-se, Nikita Crochet, Fidel,o Casto, entre muitos outros.


Ouvi estas histórias vezes sem conta.

Mas foi quando os anos 50 já entravam na idade adulta, que eu nasci.
Em plena era espacial.
Os Russos mandavam as cadelas para o espaço e não as curtiam nos salões como muitos da nossa família.

Eu era a única criança .
Fazia o que me apetecia. Jogava às cartas, às escondidas. Mentindo, dizendo que estava a fumar.
Não estudava. Não lia.
Entretinha-me a pintar por cima dos valiosos quadros. Atirava os pianos de cauda pelas escadarias. Pegava fogo aos criados. Escrevia palavrões nas paredes.
Era um “enfant terrible”.
Tentaram abandonar-me várias vezes, mas eu voltava. Chamavam-me o "Bom Merengue Aus-troll-& ano". Inclusive, o laboratório que fazia experiências médicas comigo, devolveu-me à Famiília.

Os anos 60 bolsavam os seus primeiros dias, quando tive o maior choque da minha vida.

Lembro-me como tivesse sido há 40 e tal anos.
Estava a rasgar um “Too Loose de Low Traque”, quando ouvi gritos e correrias. Fiquei atento. Aquilo era pouco habitual.
A porta do salão abriu-se e entraram uma data de Tios.
Agarraram-me. Por momentos, pensei que a pena de morte tinha sido restabelecida e que me iam imolar.
Só percebi o horror,quando me disseram:

"PARABÉNS, JOCA, TENS UM PRIMO!”

Aí, sim, assustei-me e chorei, não como uma Madalena, mas como um queque, da Lapa.